A chamada nata da música brasileira já se apresentou no charmoso Festival de Montreux, mas poucos falam no artista pioneiro que pisou naquele palco famoso. Em parte, isso se deve ao sumiço do grande artista. Seu nome? Ivson Wanderley Pessoa, porém famoso no mundo todo simplesmente como Ivinho.
A sua fabulosa apresentação no Montreux Internacional Jazz Festival em 1978 lhe rendeu um precioso LP. Pouco tempo depois daquela impecável apresentação, refez a sua simples mala de viagem e embarcou para a Suíça a fim de dar nomes às sua perolas gravadas ao vivo que iam ser lançadas em disco.
E com simplicidade franciscana, este pernambucano que eu não sei quando e onde nasceu, cumpriu a sua missão desta forma:
Lado A
Faixa 1: Teimosia
Faixa 2: Cartão Vermelho
Faixa 3: Meditação (10 min. E 35 seg.)
Faixa 4: Frevo Único
Lado B
Faixa Única: Partida dos Lobos (23 min. E 56 seg.)
Todas as faixas são instrumentais e de autoria de Ivinho.
Quando o disco foi distribuído, o impacto causado pela capa não foi menor do que a incrível capacidade deste músico de arrancar belíssimos postais sonoros de uma viola de 12 cordas que apresentava um visível buraco na madeira do instrumento. Teoricamente, aquilo poderia ter uma influência extrema na sonoridade que o músico dela extraía, mas aos gênios tudo é possível por uma provável conspiração divina.
E somente com este disco, Ivinho gravou de forma indelével o seu nome entre os maiores músicos do mundo, mas da mesma forma que apareceu de forma grandiosa em Montreux, também desapareceu.
Aí entra uma coisa que quem escreve jamais deveria enveredar por este caminho: a vida pessoal do artista. No caso dele, é preciso que se coloque o mínimo de informações possíveis para que o leitor compreenda o porquê do seu sumiço do meio artístico depois dessa ascensão fora do Brasil.
Ivinho era figura carimbada entre os grandes músicos pernambucanos que ficaram conhecidos pelo país afora na década de 70. Quando se escuta a música “Avôhai” (avô e pai), de Zé Ramalho, e seus ouvidos são presenteados com aquela viola maravilhosa, era Ivinho que estava tocando. E Zé Ramalho foi muito justo: “ela foi arranjada pelo violonista pernambucano Ivson Wanderley. São dele os acordes inaugurais.”
Mas antes disso Ivinho tinha sido personagem de Paêbirú - Caminho da Montanha do Sol - idealizado anos antes por Lula Côrtes & Zé Ramalho. Neste disco, com sua potente guitarra, na melodia de “Maracas de Fogo”, um "heavy maracatu" conduzido pela sua palheta, o estúdio da gravadora Rozenblit testemunhou o seu enorme talento.
Solista de dedos ágeis, Ivinho também manejava uma guitarra-rock. É só conferir em "Geórgia a Carniceira" e "Corpo em Chamas", gravadas no único álbum do importantíssimo grupo Ave Sangria (ex-Tamarineira Village) do qual foi um dos fundadores.
Quando Alceu Valença apresentou no Festival Abertura, da Rede Globo, a música intitulada “Vou Danado pra Catende”, Ivinho era um daqueles estranhos cabeludos que tocavam no conjunto que o acompanhava.
Por que Ivinho não se transformou num Paulo Rafael ou Robertinho do Recife, já que em termos de talento musical não deve nada a ambos? Acho que faltou a Ivinho aquilo que hoje se chama “inteligência emocional”. Vejo um profundo desrespeito pelo artista quando alguns afirmam que ele “pirou”. Pessoas que se acham normais deveriam saber que a normalidade das pessoas é aquilo que faz a loucura delas, antes de saírem divulgando bobagens. Ivinho é do tempo do sexo, drogas (álcool incluído), rock e ditadura. Isso chegou até a matar gente porque era uma combinação fatal. Não sei nem por que Ivinho está vivo ainda! Veja o que ele disse de Israel Semente, músico contemporâneo seu, ex-integrante do Ave Sangria, respondendo a seguinte pergunta: foi você quem encontrou Israel Semente morto na rua?
“- Na rua não. Foi no quarto dele. Ele estava caído lá no chão, com a porta aberta. Mas quem o encontrou foi quem morava lá. A polícia já estava lá e já tinham dado como suicídio e eu não acredito que naquele ambiente tenha havido suicídio. Foi homicídio! Ele não tinha necessidade de se suicidar. Por isso que eu digo: eu vejo a faca tratando da galinha e cortando a carne e o pão, mas não vejo esses homens com fome e com a faca pra fazer o quê com a faca? Eu falo para um, para dois ou pra nenhum ou até para todos: quando eles disserem que é o meu violão, é o meu violão. Se eles disserem que é o seu revólver, é o seu revólver. Eu uso o quê? O meu violão. Quando pego no violão é pra fazer música, quando pego na faca é pra quê? É pra mexer na cozinha. E quem tem um revólver é pra quê? Pra matar! Olha, Israel só entrava lá se estivesse com o aluguel de 150 reais pago. Então? Israel era quatro paredes e um bujão de gás. Não sei se você me entende.” Nós entendemos, Ivinho.
Sobre como surgiu o famoso rombo na sua viola de 12 cordas, Ivinho falou o que se segue, em resposta à pergunta: Na capa do disco dá pra notar o buraco que você fez na viola. O quê danado te fez a viola?
“- Foi gravando “Anjo de Fogo” de Alceu. Foi uma discussão dentro do estúdio Som Livre, no Rio. Eu só gosto de levar as coisas pro estúdio depois que estão ensaiadas, pra não ficar discutindo com o cantor: É assim. Não é assim? É como? Aí tinha uma frasezinha errada… (Ivinho declama rapidamente toda a letra de “Anjo de Fogo”) 'Eu sou como o vento que varre a cidade/ Você me conhece e não pode me ver/ Presente de grego, cavalo de Tróia/ Sou cobra jibóia, Saci Pererê/ Um anjo de fogo endemoniado/ Que vai ao cinema, comete pecado/ Que bebe cerveja e cospe no chão/ Um anjo caolho que olhou os dois lados/ Dormiu no presente, sonhou no passado/ Olhou pro futuro e me disse que não…' Quando ele disse que “não”, não foi “não”, foi um nããããão mesmo! Com uma intensidade super alta, mudou a dinâmica da música (imita os sons da guitarra, da bateria, do baixo). Paulo Rafael não estava conseguindo fazer essa frase e eu com a viola estava conseguindo. Aí eu parei para apontar o erro e até hoje estão dizendo que quem estava errado era eu e não Paulo Rafael, mas como é que vou provar?”
No Rio de Janeiro, Ivinho foi requisitado para outras gravações, porém teve problemas numa delas, com Beth Carvalho, quando o produtor do seu disco distribuiu as partituras com os músicos e Ivinho que nunca as soube ler, achou que aquilo era uma provocação. Quase sai na porrada com o homem. Depois daquele incidente, Ivinho sobrou para tudo. Seu inferno astral atingiu o máximo quando foi internado várias vezes. Ele falou disso também:
“- Nos sanatórios não tem bebida alcoólica, mas tem drogas pesadas, como Flufenan, Dienpax, Gardenal e as leves com apenas cinco miligramas de tranqüilizantes. Tem café da manhã, almoço, janta, roupa lavada, mas não tem você sozinho, tem você com um bando de pessoas viciadas, pobres, alcoólatras jogados pra dentro de uma área fechada encarando uma psicóloga, encarando um psiquiatra. Começar todo dia tudo de novo, como há dezesseis anos atrás, é uma coisa que eu não quero mais! Se você é músico, você é músico, se você é policial, é policial, mas se é deficiente mental é o quê? É porque é doido? É porque não sabe fazer nada ou porque não tem uma profissão? É porque não conseguiu ganhar dinheiro com aquilo que sabe fazer?”
É não, Ivinho. É porque você fazia música por doação. Na verdade, acho que nunca passou pela sua cabeça ficar rico com a música. Aí está o seu grande mérito como artista: dar de graça, em forma de energia, aquele imenso talento que de graça também recebeu. Recebeu dele, de Deus!
Ivinho, antes de colocar aqui suas palavras finais, eu quero registrar as minhas: esta pequena viola arrombada que você levou da Vila dos Comerciários, no Recife, para Montreux, na Suíça, na certa você já a havia carregado por outros vales e colinas de onde tirou melodias que se tornaram eternas. Suas valiosas dádivas musicais caíram sobre nossos ouvidos e as conservamos na memória até hoje. Lembre-se de que as eras passam, mas você está vivo e pode continuar a nos dar outros presentes porque na música ainda há muito espaço para ser preenchido.
Agora,sim, suas palavras finais sobre como é o Ivinho hoje:
“- Ivinho hoje é mais pra melhor do que pra pior. Porque se ele continuasse mais um dia no centro da cidade, ele ia se lascar! Um dia eu matava um ou um ia querer acabar comigo. Um casal é dois pratos sobre a mesa, ela de olho nele e ele de olho nela, e uma criança como contrapeso na vida deles. Mas no meu caso não tem mais isso. Já casei, já descasei, eu já tive mulheres como dizia aquela música de Martinho da Vila. Mas agora na minha porta, no meu almoço não tem nenhuma! Eu não sei onde ficaram as mulheres. Hoje eu não tenho obrigação de ver homens internados, homens presos, homens de lá do centro da cidade. Hoje eu tenho a minha paz aqui, na Cidade Universitária, nesse espaço todo.”
Ivinho mora de aluguel no bairro chamado Cidade Universitária no Recife. Quem o conhece poderá encontrá-lo passeando pelo campus da UFPE (instituição onde já foi tese de mestrado) solto como uma ave liberta.
(Por Abílio Neto)
Faixas:
01 Teimosia (Ivinho)
02 Clarão vermelho (Ivinho)
03 Meditação (Ivinho)
04 Frevo único (Ivinho)
05 Partida dos lobos (Ivinho)
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